Não me restam dúvidas: a Literatura pode, de fato, dar as respostas a aqueles que as procuram.
Numa das madrugadas desta semana, obtive mais uma que, confesso, jamais havia percebido ter sido a causa de 24 anos de dores.
Todos os dias, desde a aurora da minha juventude, quando passei a dedicar minhas horas às leituras da Filosofia, tenho questionado as minhas certezas. Não há um dia sequer no qual este ritual não se repita.
Entretanto, somente beirando as quatro décadas de passagem pela crosta desse planeta, deparei-me com a causa de um - apenas um - dos meus tormentos.
Jamais havia tido um sonho tão real como o daquela madrugada. Enquanto eu conduzia um cavalo pela encosta de um penhasco, próximo do mar, eu a enxerguei a alguns passos de distância, próxima a uma curva. Estava imóvel, com o mesma roupa que a vi pela última vez. Ao me aproximar, acenou um adeus com a mão esquerda e seu corpo começou a se desfazer ao vento. Seus pedaços viraram cinzas e tomaram o céu.
Em vão, minha mão estendeu-se sem, sequer, conseguir tocá-las.
1993 - O início.
Quando se tem 15 anos e uma miríade de possibilidades perante a vida, não é comum refletir profundamente sobre os próprios atos e, principalmente, nas consequências que acarretarão por toda uma vida. Eu não fugi a essa regra.
Na minha escola, havia uma menina de origem humilde, bonita, magra, de cabelos negros lisos e compridos - os olhos eram mais negros ainda - que contrastavam com a alvura da pele, sempre vestida com o mesmo macacão jeans azul. Éramos de turmas diferentes, mas do mesmo ano, e estudávamos em salas próximas. Demorou algum tempo para que eu a notasse mas, por sua vez, eu não passei despercebido para ela. Foi preciso que um colega me alertasse o quanto era fitado pelos seus olhos.
Certa tarde, na fila da cantina, começamos a conversar e, então, em quase todos os intervalos (antigamente chamávamos de recreio) falávamos sobre os mais diferentes e absurdos assuntos do repertório da adolescência. A beleza que eu não enxerguei - e anos mais tarde vivi procurando - estava dentro dela. Não possuía o "padrão de beleza" física que me atraía, até porque eu já estava ressentido com as "desilusões" amorosas recentes até então. Naquela época, havia começado a jogar xadrez e era só esse o meu interesse no mundo.
Numa destas tardes, as cozinheiras da escola fizeram chocolate quente, daqueles encorpados que dá gosto de beber. Daquele tipo que só as avós sabem fazer para os netos nos dias frios de inverno, com o carinho característico de uma avó e o capricho de um profissional. Estava quente, mas isso não impediu que eu sorvesse o meu tão rapidamente. Eu já sabia que não poderia repetir pois, era uma regra.
Nós nos sentamos próximos e já com a minha caneca vazia, a alertei para que aproveitasse cada gole da sua. Ela bebeu um pequeno gole e o ofereceu a mim:
- Hummm... Está bem bom mesmo!
- Pode ficar com o meu.
Lembro que, dentro de mim, metade dizia para aceitar e a outra, para negar a gentileza do presente.
- Pega. Tu gostas mais do que eu, pega - disse-me ela.
E no meu gesto egoísta, agradeci e o bebi como deveria ter feito como o meu. Enquanto bebia, fui observado o tempo todo. Mal sabia eu estar em frente a alguém que sentia mais e desejava mais a minha "felicidade" do que a sua própria, com uma simples caneca de chocolate quente... Não enxerguei o quanto aquela atitude era revestida de um carinho e sentimentos maiores do que propriamente o da amizade.
Dias depois, ela revelou a intenção que havia em seu coração: há muito receava dizer querer namorar comigo.
Lembro que, pela primeira vez, deixei a minha estupidez tomar a minha razão e respondi recusando a proposta, alegando um falso motivo. Na verdade, eu sentia vergonha da sua pobreza mas mal sabia que ali, o verdadeiro pobre era eu. Não fui sincero em dizer o que realmente eu sentia. Pensei que, mentindo, seria "menos pior" para ambos. Ledo engano o meu...
Mesmo com a minha recusa, continuamos nos encontrando no intervalo das aulas. Pouco tempo depois mudei de escola e, antes do fim do semestre, recebi um bilhete dela na última vez que nos encontramos, com a condição de que fosse lido apenas quando eu chegasse em casa. Depois disso, não houveram mais conversas, nem troca de olhares, nem gentilezas. Nunca mais nos vimos.
Naquele pedaço de papel pautado, assinado com a marca do batom de um beijo, estava escrito:
"Segue teu coração, pra onde quer que ele aponte."
1994 - 2017
A vida encontra meios de ensinar através de outras mãos aquilo que não aprendemos. Não importa o quanto tenhamos sido transparentes, sejamos fiéis, honestos, éticos... Nada disso vale qualquer coisa mesmo que sempre tenhamos falado a verdade para alguém que pensamos conhecer a ponto de querer construir uma vida juntos.
Passei quase 25 anos recebendo o mesmo veneno que dei a ela, de absolutamente todas as mulheres com quem mantive um relacionamento. Todo esse tempo, jamais enxerguei em mim mesmo o mal que havia feito a apenas uma. Não percebia o quanto a cada vez que eu dava a Verdade a quem quer que fosse, mais a Verdade se afastava de mim pois, aqui dentro, eu nunca havia deixado de carregar essa mentira.
E parafraseando a obra de Umberto Eco...
... eu nunca mais a vi, nem nunca soube nada mais dela. Além do mais, agora que sou um homem velho, confesso que de todos os rostos do passado, o que vejo mais claramente é a da moça da qual nunca mais lembrei nestes vários longos anos. Ela foi a primeira que me ofereceu um amor sincero, embora eu não consiga lembrar seu nome...